- Noemia Colonna
De Berlim, a estilista negra que faz um pretinho nada básico
Descobri Arrey Kono por acaso, passeando pelo centro de Berlim e dando de cara com sua loja homônima repleta de roupas cujo design único e visivelmente incomum impressiona na primeira olhada.

Entrei e logo perguntei quem era a dona daquelas ideias inspiradoras e bastante abstratas na moda. A atendente era sua irmã, que me contou que Arrey era de Camarões, vivia há mais de 20 anos em Berlim e era muito ocupada, viajando pelo mundo e apresentando seu design em semanas de moda, como as de Paris, Berlim, Milão, Londres, São Paulo e outras.
Bati o olho em uma peça plissada, com um toque futurista em um tecido fluido que, ao experimentar, tive a sensação de puro poder.

Vestir Arrey é redescobrir-se poderosamente uma mulher que não pede licença para existir e está muito bem dentro da própria pele.
Como Arrey, dona de uma pele negra retinta e de cuja mente irrequieta saem ideias de um design criativo, sofisticado e raro.
Suas roupas impactam, maravilham, seduzem, fascinam, e o seu corte não dá pistas de onde vem. Arrey camaronesa é o mundo, pois canta sua aldeia negra e torna-se verdadeiramente universal.

Não é por acaso que suas peças vestem rainhas, princesas, mulheres da alta sociedade mundial e aquelas comuns, como eu, cuja única riqueza e poder residem em sua própria feminilidade.
É claro que eu precisava conhecer esta mulher pessoalmente e ouvir sua história.
O verão passou e, no finalzinho do outono, resolvi caminhar na mesma rua de sua loja. Entrei e, dessa vez, no lugar da irmã, a encontrei. Nossos olhares se cruzaram empáticos. Um pouco tímida no início com minha aparição repentina, Arrey concordou em conversar comigo.
Foi um encontro à altura da excelência e criatividade desta mulher, cujo trabalho é ligado pela tênue linha entre moda, design e arte.
Em sua loja, enquanto ela me vestia para fotografar usando algumas de suas peças, vou descobrindo que Arrey é consciente de seu talento raro para o design de moda, mas não se deslumbra e nem se rende ao mainstream. “Detesto holofotes e só vou para as passarelas porque sou obrigada a assinar minhas peças no final do desfile”, diz. Sua discrição destoa de sua elegância gritante, que mesmo que queira, não consegue esconder.

Arrey é dona de um carisma marcante. Nos lábios, um batom vermelho carmim que realça ainda mais o seu rosto expressivo. Muito comunicativa, ela narra sua trajetória enquanto somos fotografadas pela espanhola radicada em Berlim, Ana Valdivia.
Filha de um pai engenheiro e de uma madrasta professora, Arrey conta que começou a desenhar ainda pequena. Aos 4 anos, adorava fazer vestidos para as mulheres da família, mas ninguém se dava conta de seu talento precoce para o design de moda. Adulta, deixa seu país Camarões e vem para a Alemanha estudar línguas e tradução (hoje ela fala 5 línguas, entre elas, um alemão impecável).
Enquanto estuda, engrossa a renda desenhando e costurando suas próprias peças para vendê-las em feiras e mercados da cidade. Até que um dia, suas roupas são vistas por uma mulher riquíssima, dona de uma rede de boutiques, que logo se apaixona por seu trabalho e a convida a expor e vender em suas lojas. A carreira de Arrey começa a dar os primeiros passos.
A futura estilista forma-se tradutora, tem um filho, muda-se para Berlim e aqui abre sua própria grife. Nada disso acontece com facilidade. Arrey enfrenta as dificuldades típicas de quem cria um filho sozinha, de quem se endivida para levantar capital e abrir um negócio próprio, e de quem é negra vivendo em um mundo branco e hermético a ideias consideradas como “outras” ou “diferentes”.
“O mais difícil de tudo é me impor como chefe de pessoas brancas ou ocupar o lugar de uma pessoa que manda, quando todos esperam que, como uma mulher negra, meu lugar não seja este”, confidencia.
Em um momento de nossa conversa, Arrey arruma o meu cabelo para torná-lo mais alto e poderoso, como de gente que está viva. "Cabelo baixo é cabelo de quem está morto”, diz. A fotógrafa clica. Arrey recua. “Por favor, eu não sou cabeleireira, sou designer. Não me fotografe arrumando o cabelo dela. Com todo respeito ao trabalho dessas profissionais, uma mulher com a cor da minha pele será facilmente confundida como a assistente, e não como a designer responsável pela criação das roupas que a Noemia está usando”, argumenta firme relembrando que uma imagem fala mais do que mil palavras.
A fotógrafa respeita, e eu aprendo mais uma lição de afirmação de uma mulher experiente em se impor e garantir o seu papel no mundo no lugar em que ela mesma determinou ocupar.
Arrey credita o seu sucesso a uma máxima que nunca abandona: “Berlim te dá o que você dá a ela”, diz. Fica fácil compreender o que a cidade deu a Arrey em troca do que ela deu a Berlim. Sua loja fica em um endereço badalado, no Hackesche Höfe no centro da cidade, e chama a atenção de quem passa e está disposto a gastar no mínimo mil euros em uma única peça.

Neste lugar, temos uma dimensão do que seja a Berlim multicultural, a cidade aberta a diferentes expressões de arte e moda, aquela que inclui e abre braços e portas para o diferente do “universal” (entre aspas mesmo, porque este conceito se torna cada vez mais desprovido de sentido, em um mundo com muitas caras e muitas definições).
As clientes são de todas as raças e origens sociais, e apreciam o trabalho de Arrey levando suas peças para os quatro cantos do mundo. Ela não se deslumbra. Entende o seu dom como algo natural e, se o tem, precisa usá-lo e compartilhá-lo com as pessoas. Assim ela se sustenta e vive o prazer de encantar outras mulheres com sua arte.
Generosa, me permitiu escolher a peça que eu quisesse para as fotos que ilustram esta matéria e, de quebra, após ver o meu encanto por seu trabalho, me presenteou com uma que ocupará um lugar especial em meu guarda-roupa.
Nossa empatia foi quase imediata. Duas irmãs negras unidas pela diáspora compartilham histórias que são comuns em nosso cotidiano, pois a vivemos por causa do que nossa pele e corpos significam para uma sociedade que insiste em nos colocar em lugares de subalternidade. Mulheres teimosas que somas, contrariamos. Por isso, nos identificamos uma com a outra.

Arrey me acolheu carinhosamente, oferecendo sua história e dando a oportunidade de refletir por que mulheres como ela me fascinam. Concluo que, em um mundo que pouco representa mulheres negras retintas e reais como Arrey, conhecê-la serve como um bálsamo num mar de dores que pode vir embutido no pagamento do preço de se ocupar lugares ao sol a partir de nossa história, expertise e talentos.

Na passarela e fora dela, Arrey politiza a cena fashion de Berlim, apregoando a excelência negra de uma moda que não pede licença para ser grande, legítima e 100% original. Black is beautiful in Berlin.
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